quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Capítulo II : A mudança


  "Toda reforma interior e toda mudança para melhor dependem exclusivamente da aplicação do nosso próprio esforço."
(Immanuel Kant)

               No carro, seguimos os três em direção ao hospital, nossa heroína não se cansava de afirmar que estava bem e que aquilo não havia necessidade, contudo, sua linda fisionomia descrevia algo adverso as suas falas, seu rosto, sempre branco, com seus olhos azuis, cabelo e sorriso contagiante e pueril, salvo guardo pelas manhãs, como vocês também já o sabem, caros leitores, fora substituído por uma face ruborizada, um olhar oblíquo e um sorriso esmaecido, não sei o quê acontecera com a pequena, contudo, tinha a esperança que um médico resolve-se aquilo o mais rápido possível.
              Enquanto isso, no carro, Valentina, que afirmava sentir-se bem, conversava com seu primo, o qual não parava de fazer perguntas:
                  - O que aconteceu, me explica, não entendi nada.
                  - Não sei, toquei no livro e senti algo estranho, de repente, choquei-me contra a parede, é a única lembrança que tenho.
                 - Meu, como não lembra de nada?
                 - Não lembrando, Enzo, mas estou bem.
                 - Não é o que parece, precisa se ver.
                 - Juro que me sinto bem!
                 - Seu conceito de bem precisa, urgentemente, ser reformulado.
              - Nossa, você falando assim, parece que estou um trapo, mas não me sinto assim.
                 - Vou tirar uma selfie nossa  pra você ver.
                 - Tá bom!
                 - Nossa, você me deu choque,  está parecendo um peixe-elétrico!
                 - Isso é estática, estática, Enzo. Viu o que dá não estudar?
                - Estudo tanto que sou capaz de explicar.
                - Ah é!? Então explica.
                - Minha cara aluna, estática é, na física,  o ramo da mecânica que estuda as propriedades de corpos que estão em equilíbrio quando sob a ação de forças. 
                 - Falou, falou e não disse nada.
                 - Elementar minha criança, no caso em questão, em que toquei você, o que ocorreu foi um desequilíbrio entre as cargas..
                  - Porque essa voz besta?.
                  - Não me interrompa, criança, ainda tem uma curiosidade, pois gosto das coisas nos mínimos detalhes, a eletricidade estática entre as pessoas é mais comum em dias secos.
                - Obrigado, Sherlock Holmes!
                - Tonta, que Holmes o que, eu estava imitando o tio, você nunca ouviu seu pai falando? Choro de rir.
                - Esse meu sobrinho é inteligente, e, hoje, Valentina, não está um dia seco.
                - Tio, para professor de física, o senhor é um grande historiador.
                - Pai, não me faça passar vergonha, os dias frios, por causa da baixa umidade, são mais secos.
                - Vamos tirar a selfie antes que você melhore e eu não registre essa cara horrível para eternidade.
                  - Meninos, até nessas horas vocês tiram fotos para postar nas redes sociais.
                 - Não tio, é para mostra a Valentina como ela está linda.
                 - Obrigado pelo falso elogio, Enzo, vai ajudar muito com minha autoestima, depois do "cara horrível".
                 - Minha mãe sempre me fala: "Enzo, sua sinceridade é linda!"
                - Já sei de quem legou o sarcasmo.
                - Meninos, chegamos, vamos lá.
                - Enzo, vou te contar um segredo, não me sinto doente ou com dor, mas me sinto diferente, só não queria que meu pai soubesse.
                - Diferente como?
                - Não sei explicar, mas sei que mudei.
                - Espero que essa cara não fique para sempre, porque a da Nix me assusta, mas é linda, esse não é seu caso.
                 - Obrigado, Enzo!
                 - Por que estão demorando para sair, aconteceu alguma coisa?
                 - Já estamos saindo, tio.
                 Ao entrarmos no saguão do hospital, o sorriso de outrora coletivo, agora dera lugar ao desanimo, porque era impossível ver o fim da fila e os rostos das pessoas, que ali estavam, aumentavam a ideia de que ficaríamos ali por um bom tempo. Algumas horas depois, fomos atendidos, o médico, um jovem de mais ou menos 30 anos, examinou Valentina e, em cinco minutos de observação, classificou o caso como sendo uma virose e prescreveu, para tratamento por 7 dias,  Amoxicilina. Deixamos o hospital e fomos para casa.
                - Tio, o senhor não acha estranho prescrever Amoxicilina se é uma virose?
                - Pai, eu não vou tomar antibiótico!
                - O médico falou que vai te ajudar, Valentina.
                - Tio, como um antibiótico vai ajudar numa virose?
                - Não sei.
                - Nem o senhor nem ninguém.
                - Vamos para casa, lá falamos com sua mãe.
                Ao chegar em casa, apesar de estar conversando normalmente com seu primo e pai, Valentina, com o seu olhar distante, estava, na verdade, em um momento de introspecção e aplicando todo seu esforço para entender as mudanças pelas quais passava.
               - Pai, estou com dor de cabeça, vou para o quarto um pouco.
               - Aí  meu Deus, Valentina, quer tomar o remédio?
               - Não pai, valeu!
               - Está bem filha, descanse um pouco, vou tentar falar com sua mãe, ela ainda não sabe do ocorrido.
               - E eu, vou ficar aqui sozinho? Meu pai vai demorar um pouco para chegar.
               - Vem comigo, Enzo, quero falar com você.
               -  Tá bom!
               No quarto, Valentina primeiro verificou se eu não estava próximo, encostou a porta, chamou o Enzo à mesinha de estudos, escreveu no papel e pediu que lesse em silêncio. Lá estava escrita a seguinte frase: Você consegue ouvir esse monte de vozes?
               Enzo, não conseguiu controlar seu impeto de fazer piada com tudo e soltou:
               - Ouço.
               - Sério?
               - O tempo todo.
               - Estou falando sério!
               - Óbvio que não, não sou sensitivo.
               - Para, Enzo, é sério meu!
               - Tá bom, mas é engraçado! De onde vem as vozes?
        - Aí está, não sei, não tem ninguém aqui, mas estou ouvindo duas pessoas conversando.
                  - Saí pra lá, não vou ficar aqui com você, está me dando mais medo que a Nix.
                  - Preciso que você me ajude a atender.
                  - Vamos pesquisar na internet, lá tem tudo.
                  - Vamos!
                  - Minha internet está horrível e seu wi-fi não ajuda muito.
                  - Então vamos pesquisar no computador.
                  - Beleza, eu pesquiso!
                  - Tá.
                  - Nossa, uma barata, me dá o veneno aí.
                  - Não tem.
                  - Então vou usar esse livro aqui.
                  Um grito estrondoso ecoou nos tímpanos de nossa heroína .
                  - SOCORRO, ELE VAI ME ACERTAR COM O LIVRO.
                  - Enzo, pare! Acho que você tem razão.
                  - Sempre tenho, mas do que está falando?
                  - Acho que ouvi a barata gritando.
                  - Que?
                  - Não a acerte com o livro.
                  O soar da campainha tilintou por toda casa, aquele som sempre comum a casa, trouxe, dessa vezes, uma visita inesperada. Ao abrir a porta, notei aquela figura pálida em pé a minha frente.
                  - Boa tarde, a vi na escola, mas quem é a senhora?
                  - Sou a professora Nix, substituta da Métis, vim ver como sua filha está.
                  - Fico feliz que alguém da escola tenha vindo saber como ela está, mas bastava um ligação, não precisa se deslocar tanto, não queríamos incomodar, mas é um gesto bonito da escola.
                  - Dandara fez questão de que alguém viesse pessoalmente.
                  - Ela está bem, o médico disse que é uma virose.
                  - Mas o senhor disse que foi um choque contra a parede?
              - Sim, mas acho que ele não entendeu ou não quis me entender, tinha tanta gente.
                  - Entendo, uma pena.
                  - Mas tudo bem, a mãe dela e o avô são os médicos da família.
                  - Dois médicos na família, que bom!
                - É brincadeira, minha esposa é farmacêutica e meu pai e engenheiro agrônomo.
                - Ela eu entendi a ajuda com os remédios, mas  e o avô?
                - Meu  pai sempre foi da filosofia de que, se serve para um animal, então, serve para gente também.
                 - Compreensivo.
                  - Vou chamar a Valentina, aguarde um momentinho, enquanto isso, sinta-se à vontade.
                 Com passos lentos e sóbrios, direcionei-me ao quarto onde estavam as crianças, contudo, não saía da minha cabeça a necessidade de entender o motivo de um membro da escola vir até minha casa, lembro-me, como se fosse ontem, quando, durante duas semanas, na ocasião em que Valentina ainda não completara dois anos de idade, a pequena fora mordida todos os dias, contudo não viera ninguém nos visitar. Bati à porta e entrei no quarto:
                  -  Valentina, sua professora Nix veio de ver.
                  - Sério, pai, já vou.
                  - Estarei na sala com ela esperando por vocês.
                  - Tudo bem, pai.
                 - Ela veio aqui, meu Deus!
                - Calma, Enzo!
                - Calma, ela quando descobriu que eramos primos, queria me interrogar.
                - O que fez?
                - Oras, o que todo homem faria, que pergunta.
                - Você conversou com ela!?
                - Claro que não, saí correndo.
                - Nossa você é muito corajoso!
                - Queira ver se fosse você.
                - Eu falaria normalmente.
                - Sei, assim como é normal ouvir vozes.
                - Vamos lá na sala.
                - Eu não vou.
                - Vamos, Enzo, preciso de você lá.
                - Eu não, vocês vão se entender bem, ela é estranha, você fala com barata, sou o único normal, então, fico aqui.
                - Anda, Enzo.
                - Meu, estou arrependido de ter entrado nessa com você.
                - Para de ser bobo e vamos.
                Os dois foram para sala e lá estava a professora sentada com aquele aspecto sério e de arrepiar.

Um comentário:

  1. Muito da hora... Estilo de leitura que curto, envolvendo mistério e comédia... O mais bacana é que eu conheço os personagens reais e ler imaginando eles em cena é muito show... Quando vir Valentina e Enzo de novo, viu olhar para eles com outros olhos, imaginando-os vivendo essas aventuras...

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